Seguidores de Rosana irão se decepcionar caso alimentem a expectativa de ouvir no álbum Feitiço a mesma cantora que frequentou assiduamente as paradas na segunda metade dos anos 1980, em escalada iniciada em 1986 com a difusão da balada Nem um toque (Michael Sullivan e Paulo Massadas) na trilha sonora da novela Roda de fogo (Globo, 1986 / 1987).
A cantora de Feitiço – primeiro álbum de Rosana em 20 anos – é outra e reaparece ambientada na atmosfera do soul e do R&B, em sintonia com o surgimento da artista no universo da black music à moda brasileira.
No mercado fonográfico desde 1969, ano em debutou como vocalista do grupo Cry Babies no primeiro raríssimo álbum dessa banda de funk-jazz, Rosana já pouco lembra a cantora que estourou em 1987 com O amor e o poder, versão em português da balada The power of love (Jennifer Rush, Candy de Rouge, Gunther Mende e Mary Susan Applegate, 1984), importada para o Brasil com letra de Claudio Rabello.
No álbum Feitiço, Rosana assina o tratamento das vozes e overbubs, fazendo pulsar no canto já menos viçoso a veia soul de outrora, sob direção de Sergiopí, produtor musical de oito das nove faixas em função dividida com parceiros como Bombom (baixo elétrico, guitarras, efeitos), Hiroshi Mizutani (teclados, programações) e Jair Donato (guitarras, programações).
A exceção é Setembro, melodiosa balada composta por Wado com Zeca Baleiro e cantada por Rosana em dueto com Baleiro em tom mais outonal do que primaveril. Wado e Jair Donato arranjaram a faixa gravada, mixada e masterizada por Tuta Macedo.
Balada-soul composta por Hyldon em parceria com Michael Sullivan (autor de vários hits de Rosana na fase áurea da cantora), Um tempo pra nós dois tem refrão sedutor e poderia até fazer sucesso em alguma novela se viesse fora atmosfera de chill trap em que foi ambientada.
Da mesma forma, há uma veia pop querendo brotar no acento soul da música-titulo Feitiço, composição de Leoni com Cris Braun, parceira de Alvin L. em Menos Carnaval (1997), outro tema embebido no pop soul que uniformiza o repertório do disco.
Entre o amor sensualizado da dispensável regravação de Cidadã do mundo (Torquato Mariano e Claudio Rabello, 1989) e o alto poder de sedução de Faz um papapa (Rosana e SérgioPí), interlúdio disco-soul-funk-pop que ecoa de longe o som de Lincoln Olivetti (1954 – 2015) e Robson Jorge (1954 – 1992) nos anos 1980, Rosana reforça o discurso feminino do álbum Feitiço em Wonder woman (Alex Moreira, Gabriel Moura e Cris Delanno) – música menos imponente no conjunto da obra – e se junta ao filho, o rapper Fiengo, em Eu bem que te avisei (Sérgiopí e Bombom, 2020), faixa de batida house apresentada há três anos como o primeiro single deste 11º álbum de Rosana.
Encerrado com So beautiful, pt. 1, vinheta que faz o disco sintonizar FM ligada em algum lugar do passado, o álbum Feitiço chega ao mundo 40 anos após o primeiro álbum da cantora. Rosana, lançado em 1983 com repertório dominado por músicas de compositores do funk e do soul brasileiro.
A conexão entre os dois álbuns deixa entrever a coerência do som de Rosana em trajetória já inevitavelmente associada às baladas confeitadas com o açúcar das FMs dos anos 1980.