Dois fatores desvalorizam a edição de Estácio vivo, álbum que apresenta inédito registro de show feito por Luiz Melodia em 1998 no Teatro Rival, casa popular situada no Centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
O primeiro é que a imagem do cantor na capa deste disco póstumo não condiz com o visual do artista na época. Pelo cabelo, a foto parece ter sido tirada na segunda metade dos anos 2000, quando Melodia adotou dreadlocks.
O segundo é que, a partir de 1999, a discografia do cantor e compositor carioca ganhou vários registros de shows, o que atenua o valor documental da gravação captada há 25 anos e lançada ontem, 17 de novembro, pela gravadora Sony Music sem aviso prévio.
Contudo, sobre todas as coisas, a favor do disco, pairam o talento de Luiz Carlos dos Santos (7 de janeiro de 1951 – 4 de agosto de 2017) e o poder de sedução do cancioneiro atemporal do artista.
Com 16 músicas no repertório essencialmente autoral, o álbum Estácio vivo flagra Luiz Melodia a um ano de novo pico de popularidade alcançado com a edição em 1999 do disco Acústico ao vivo, gravado em show do cantor no mesmo Teatro Rival. Só que os repertórios são diferentes, com exceções de dois sucessos recorrentes em ambos os álbuns, Magrelinha (1973) e a inevitável balada bluesy Pérola negra (1971), músicas do retumbante álbum de estreia de Melodia, lançado há 50 anos.
“Que seja uma noite maravilhosa para nós”, desejou o cantor antes de cantar Onde o sol bate e se firma (1978), composição que sinaliza a ambiência carioca em que está situado o disco. Nascido e criado no Morro do São Carlos, no bairro do Estácio, celeiro carioca de bambas seminais dos anos 1920, Luiz Melodia expandiu a obra autoral além do samba, abarcando blues, rock, soul, choro, funk e o iê-iê-iê romântico da Jovem Guarda em cancioneiro que transcendeu gêneros e épocas.
Mas, como já avisava no título da primeira música do álbum Estácio vivo, O sangue não nega (Luiz Melodia e Ricardo Augusto, 1983), corria nas veias do artista o suingue tropical evidenciado no show tanto no canto de Melodia quanto nas teclas serelepes de Jorjão Barreto.
Pilotando os teclados também proeminentes em Objeto H (1973) e em Quizumba (Luiz Melodia e Cara Feia), música então inédita que o cantor somente gravaria três anos depois no álbum Retrato do artista quando coisa (2001), Jorgão Barrato integrou a banda arregimentada por Melodia para o show de 1998 ao lado de Aluízio Veras (contrabaixo), Élcio Cáfaro (bateria) e do craque Renato Piau (guitarra e violões), cujas cordas eletrificam Congênito (1975) e Farrapo humano (1973), música lançada há 50 anos com arranjo situado entre o rock e o blues.
Afiado, o toque da banda reflete a pulsação mencionada em verso de Mistério da raça (Luiz Melodia e Ricardo Augusto, 1980), música de roteiro que fugiu da linha óbvia dos greatest hits.
Originalmente um samba carnavalesco que animou folias da década de 1960, Levanta a cabeça (Oswaldo Nunes e Ivan Nascimento, 1966) é erguida por Melodia com fluência na cadência do reggae, com alusão às positives vibrations dos reis do gênero jamaicano.
Ainda em território alheio, Melodia faz o grande intérprete aparecer no picadeiro quando expõe a dor do samba-canção Palhaço (Nelson Cavaquinho, Oswaldo Martins e Washington Fernandes, 1951) com melancolia, mas sem melodrama, e quando desliza macio no suingue que guia o canto de Que loucura (1976), blues de Sérgio Sampaio (1947 – 1994) que Melodia já abordara há 11 anos no álbum Claro (1987).
Mesmo que haja uma ou outra música menos imponente no repertório, casos das então inéditas Gotas de saudade (Luiz Melodia e Perinho Santana, 2001) e sobretudo de Lorena (Luiz Melodia, Renato Piau e Mahal, 2001), o cantor é pura sedução no show de 1998 ora perpetuado no álbum Estácio vivo.
Feita há 25 anos, a gravação ao vivo do disco tem tanto frescor que transcende o tempo na eternidade da obra de Luiz Melodia.