Cada registro de show de Chico Buarque molda retrato nítido do tempo do artista e do tempo do Brasil. Que tal um samba? Ao vivo – álbum lançado hoje, 24 de novembro – espoca flash de um país em turbulência. Quando o show chegou à cena, em setembro de 2022, o roteiro expunha o desalento do povo mais antenado de nação desgovernada que saía dos trilhos a cada dia.
Quando a turnê entrou em 2023, o show foi bafejado pela boa brisa que soprou no Brasil a partir de janeiro para (tentar) virar página infeliz da história do país. É nesse momento mais arejado que o show Que tal um samba? foi captado, em 3 e 4 de fevereiro, em apresentações feitas na casa Vivo Rio, no Rio de Janeiro (RJ), diante de público aglomerado na pista, e não nas tradicionais cadeiras que acomodaram a plateia das apresentações anteriores.
A experiência sensorial completa poderá ser degustada quando a gravadora Biscoito Fino pôr no mercado o DVD do show, ressuscitando formato já anacrônico na indústria do disco. Por ora, o álbum – que também será lançado futuramente em CD duplo – já permite sentir a atmosfera de congraçamento que uniu público e artistas.
Ao lado da convidada Mônica Salmaso, partner do cantor ao longo do show, Chico Buarque seguiu roteiro que ofereceu bom recorte do cancioneiro da artista em 31 números encadeados sem a intenção de fazer retrospectiva de obra monumental construída há 60 anos.
Aos 78 anos quando o show foi gravado ao vivo (atualmente o artista já tem 79 anos, festejados em 19 de junho), Chico Buarque se porta em cena com a voz maturada. Como Chico nunca foi conhecido pelo alcance ou potência dessa voz, os efeitos do tempo no canto do artista soam diluídos, insignificantes, no conjunto da obra deste disco ao vivo – o primeiro álbum de Chico em cinco anos. Será o último? Somente o tempo poderá dizer.
No momento, o que se tem à disposição é grande disco em que Mônica Salmaso expõe a já notória maestria vocal ao interpretar canções como Mar e lua (1980) e a valsa Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque, 1983), destaques do set solo da cantora.
Juntos, anfitrião e convidada caem no samba Biscate (1993) para celebrar a voz de Gal Costa (1945 – 2022) – número que virou tributo com a morte da cantora no meio da turnê – e, com ou sem intenção, evocam Maria Bethânia quanto cantam Sem fantasia (1968), música emblemática do roteiro do show que uniu Chico e Bethânia em 1975.
Sozinho, Chico tira sarro ao dar outro sentido político a Bancarrota blues (Edu Lobo e Chico Buarque), reconta a tragédia de O meu guri (1981) – música bissexta na voz do autor – e expia a saudade da irmã Miúcha (1937 – 2018) com o canto de Maninha (1977).
Senhor compositor, Chico Buarque reina em cena com o conforto proporcionado pelo toque da banda regida pelo diretor musical Luiz Cláudio Ramos (violão) e formada por Bia Paes Leme (teclados e vocais), Chico Batera (percussão), João Rebouças (piano e cavaquinho), Jorge Helder (baixo e bandolim), Jurim Moreira (bateria) e Marcelo Bernardes (saxofone, flauta e clarinete), além do próprio Chico ao violão.
Nada surpreende. Tudo pode até soar déjà vu. Mas quem se importa? Chico Buarque é o porta-voz do Brasil tanto no tempo sombrio da maldade quanto na era solar da boa brisa.