♪ Terceiro álbum lançado por Alceu Valença ao longo deste ano de 2021, Senhora estrada está sendo apresentado como o fecho de trilogia de álbuns gravados pelo artista somente com a voz e o violão –formato até então inédito.na discografia do artista pernambucano.
Só que, a rigor, Alceu gravou quatro discos no período de isolamento social. Enraizado na cultura nordestina apreendida pelo artista na vivência em São Bento do Una (PE), cidade interiorana e sertaneja onde Alceu Valença nasceu há 75 anos, Senhora estrada seria o último do lote pela ordem prevista originalmente.
O terceiro título seria o álbum gravado por Alceu com a guitarra de Paulo Rafael (1955 – 2021), músico fundamental na arquitetura do som do cantor.
Com a morte de Paulo Rafael em 23 de agosto, Senhora estrada passa à frente na fila e chega ao mundo digital nesta sexta-feira, 19 de novembro, como espécie de inventário afetivo da memória desse artista que cresceu no sertão pernambucano ao som influente de aboiadores do mato, cantadores, emboladores, sanfoneiros e violeiros.
Com roteiro tão bem amarrado quanto os dos discos dois antecessores, Sem pensar no amanhã (2021) e Saudade (2021), o álbum Senhora estrada impressiona pelo alto padrão de qualidade do som da voz e do violão – captados com limpidez, mérito de Rafael Ramos e do próprio Alceu, produtores musicais do disco – e das interpretações de músicas encadeadas com critério.
Já na abertura do disco, fora do trilho autoral, Alceu refaz a viagem de Pau-de-arara (Luiz Gonzaga e Guio de Moraes, 1952) com divisões manemolentes e repetições de palavras que renovam a música. Por ter Luiz Gonzaga (1912 – 1989) como uma das referências matriciais da obra que vem apresentando ao Brasil desde o início dos anos 1970, Alceu alocou duas músicas do Rei do baião logo no início do álbum Senhora estrada.
Na costura do disco, Pau-de-arara antecede Numa sala de reboco (Luiz Gonzaga e Zé Marcolino, 1965), tema forrozeiro de sensualidade realçada pelo canto quase maroto do intérprete. É quando a paixão aparece na estrada para permanecer até o fim da rota existencial do cantador.
“Pra quem sofre de dor de cotovelo, remédio é forró, xote e baião”, receita em versos de Pé de rosa (Alceu Valença, 2001), celebração do acasalamento dos arrasta-pés. Cantada com vocais ruminados, Pé de rosa brotou originalmente há 20 anos em gravação feita pelo artista para o álbum Forró lunar (2001).
Desse mesmo disco Forró lunar, Alceu também colhe Xote delicado (2001), música em que o poeta andarilho exalta o amor que o une à mulher, Yanê Valença, autora das fotos promocionais do álbum Senhora da estrada. Já a gravação de Depois do amor (Alceu Valença, 2005) evidencia, no toque do violão de Alceu, a influência da música ibérica no sertão nordestino.
A toada amorosa segue fluente com o cheiro sensual exalado pelo xote Flor de tangerina (Alceu Valença, 2002), abrindo caminho para Vai chover (Alceu Valença e Herbert Azul, 1999) – música de versos líricos que louvam a senhora dos navios e do amor do artista – e para o coco Coração bobo (Alceu Valença, 1980), único grande hit do cantador em repertório povoado por lados B de discografia coesa que nunca saiu dos trilhos.
Nesse oceano de paixão que inunda o álbum Senhora estrada, Alceu refaz a rota de Pelas ruas que andei (Alceu Valença e Vicente Barreto, 1982) para seguir os caminhos do coração bobo desse cantador.
Nessa rota, o artista tira Cabelo no pente (Alceu Valença e Ricardo Barreto, 1981) para pisar pelas ruas do passado com esse xote harmonioso cuja letra cita Pisa no fulô (João do Vale, Ernesto Pires e Silveira Júnior, 1957), malicioso xote de tempos idos.
No fecho do disco, com ecos da música moura e da prosódia dos aboiadores, Alceu Valença louva a própria estrada – companheira fiel do destino itinerante do cantador – na única música inédita do disco.
Toada composta para a trilha sonora do filme A luneta do tempo (2015), mas inutilizada no disco com a trilha sonora do longa-metragem escrito e dirigido pelo próprio Alceu Valença, Senhora estrada se afina com o roteiro deste álbum de 2021 em que o artista volta para a casa, refazendo caminhos do coração bobo de paixão, com a nostalgia do tempo de menino vivido no incandescente solo do agreste pernambucano.