♪ Pode-se questionar a obviedade de uma ou outra música entre as 12 composições selecionadas por Ney Matogrosso para Nu com a minha música, álbum que chegou ontem, 28 de outubro, ao mundo digital com capa que expõe o cantor de 80 anos em expressiva foto de Marcos Hermes.
É difícil, por exemplo, entender o que faz Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974) nesse mosaico de canções lançadas originalmente entre 1969 e 2020.
Como sinalizara o EP que adiantou quatro faixas do álbum em 1º de agosto de 2021, dia do 80º aniversário do artista, Ney nada faz por Gita, embora faça muito pela lírica balada Unicornio (Silvio Rodríguez, 1982), creditada no EP e no álbum como Mi unicornio azul, como também é conhecida essa belíssima canção cubana de amor e erotismo gay.
Contudo, é inquestionável a habilidade do cantor para reapresentar uma música, antiga ou nova, com as devidas intenções. Se “cantar é vestir-se com a voz que se tem”, como sentenciou Teresa Cristina em verso da música-título do álbum Cantar (2007), Ney veste as 12 canções do disco Nu com a minha música com a habitual e contundente elegância e com a voz ainda portentosa que ostenta aos 80 anos.
Por mais que a metálica lâmina vocal do artista já tenha naturalmente perdido um pouco do brilho, o canto deste senhor intérprete ainda cintila e lateja no álbum que totaliza 12 faixas gravadas com produção musical repartida entre o pianista Leandro Braga, o violonista Marcello Gonçalves, o guitarrista Ricardo Silveira e o tecladista Sacha Amback.
Quando Ney dá voz ao “pensa” do verso final “Será que você ainda pensa” da balada Quase um segundo (Herbert Vianna, 1988), o canto soa como orgasmo na gravação que insinua clima de blues no arranjo de Ricardo Silveira.
É o mesmo canto que traduz a festa prometida no reencontro amoroso ansiado pelo eu-lírico de Espumas ao vento (Accioly Neto, 1997), aliciante standard da canção sentimental de cepa mais popular que se salva na seleção do disco – é outro exemplo de obviedade do repertório por já ter sido tão cantada – pela pujança ainda observada na interpretação do artista.
Cantor de peito aberto que sempre hasteou a bandeira da liberdade, mesmo sem tomar partidos e posições explícitas, Ney Matogrosso embute o sexo no canto.
Por isso, faz tanto sentido no álbum Nu com a minha música o erotismo mais interiorizado de Noturno (Vitor Ramil, 2004 / 2021) – canção de letra ampliada pelo compositor a pedido de Ney e gravada com o toque preciso e solitário do piano de Sacha Amback – quanto a folia dionisíaca de Faz um Carnaval comigo (Pedro Luís e Jade Beraldo, 2019), música em si menos imponente na seleção do álbum.
Faixa de verve sublinhada pelo sopro do clarinete de Anat Cohen, toque de picardia no arranjo do violonista Marcello Gonçalves, Sei dos caminhos (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1991) também se insinua sensual e marota.
O mesmo Marcello Gonçalves armou a cama para que Ney deitasse confortável e entoasse a balada bluesy Sua estupidez (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1969) em tom quase lânguido e por vezes quase acariciante. A exuberante opulência vocal do cantor impediu a interpretação de atingir todo o intimismo pretendido, mas como não reconhecer a grandeza do cantor nessa abordagem de Sua estupidez?
Na contramão do intimismo, Estranha toada (Martins e PC Silva, 2019) exterioriza intenções e paixões com a autoestima de um leonino em arranjo de Sacha Amback que harmoniza cordas e sopros.
Boca (2020) se abre lasciva, com a cara de Ney, em gravação que edita os versos da letra original da música de Felipe Rocha, lançada por Rafael Rocha – irmão de Felipe – em registro fonográfico feito com a participação do próprio Ney.
Completado com duas faixas já apresentadas no EP editado em 1º de agosto, Se não for amor, eu cegue (Lenine e Lula Queiroga, 2011) e a música-título Nu com a minha música (Caetano Veloso, 1981), o álbum comemorativo dos 80 anos de Ney Matogrosso mostra que o cantor continua pujante, com força para botar o bloco na rua, vestido com a (ainda grande) voz que tem.