♪ Quando a voz cavernosa de Jorge Du Peixe começa a ecoar os versos de Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1950), seguindo a toada melancólica da música na abertura do disco Baião granfino, o subtítulo do primeiro álbum solo do artista pernambucano – Jorge Du Peixe interpreta Luiz Gonzaga – começa a fazer sentido.
Cantor projetado nacionalmente como integrante da banda Nação Zumbi, da qual assumiu o posto de vocalista após a morte precoce de Chico Science (1966 – 1997), Jorge José Carneiro de Lira oferece uma interpretação pessoal do repertório matricial do cantor, compositor e sanfoneiro Luiz Gonzaga do Nascimento (13 de dezembro de 1912 – 2 de agosto de 1989), artista que começou a cavar o reinado do baião cinco décadas antes de a Nação Zumbi fincar antenas na lama recifense do Mangue Beat.
Há múltiplas referências da nação musical nordestina, como o canto das rezadeiras da região, evocado pelo coro feminino que encorpa Assum preto, faixa que abre o álbum lançado em 17 de setembro pelo selo Babel.
Contudo, Jorge Du Peixe incorpora as próprias referências ao disco gravado no início deste ano de 2021, no estúdio paulistano Doze Dólares, com produção musical confiada a Fábio Pinczowski.
Tanto que escolheu abrir os trabalhos promocionais do álbum Baião granfino em 30 de julho com single que rebobinou um maracatu, Rei bantu (Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 1950), pelo fato de esse gênero musical pernambucano – pouco associado ao Rei do Baião – estar entranhado na gênese da Nação Zumbi.
Jorge Du Peixe canta músicas como 'Assum preto' e 'Orélia' no primeiro álbum solo, 'Baião granfino' — Foto: José de Holanda / Divulgação
É com fidelidade à própria personalidade musical, mas sem trair o espírito da obra fundamental de Gonzagão, que Jorge Du Peixe interpreta músicas como Sanfona sentida (1973) – composição da lavra de Dominguinhos (1941 – 2013) e Anastácia que Gonzaga incorporou ao repertório a partir da gravação feita para o álbum Capim novo (1976) – e a dengosa Orélia (1979), música creditada somente a Humberto Teixeira (1915 – 1979), lançada em disco por Gonzaga no ano da morte do parceiro e revivida por Peixe com toque de ska e com o coro feminino recorrente em Baião granfino.
A presença de músicos do naipe de Pupillo (reconhecível na marcação firme da bateria de muitas das 11 faixas do álbum), Mestrinho (sanfona, menos sobressalente do que em discos dedicados ao cancioneiro de Gonzaga), Swami Jr. (violão) e Carlos Malta (sopros) valoriza o álbum Baião granfino.
É a sonoridade do disco que dá certo ar de novidade a baiões já tão batidos como Qui nem jiló (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1949) e Sabiá (Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 1951).
De toda forma, é justo reconhecer que a seleção de repertório de Jorge Du Peixe surpreende em faixas como Acácia amarela (Luiz Gonzaga e Orlando Silveira, 1982) – resignado tema de lirismo social tingido por tons épicos na abordagem do artista – e a toada Cacimba nova (Luiz Gonzaga e José Marcolino, 1965), além da própria música-título Baião granfino (Luiz Gonzaga e Marcos Valentim, 1955).
Baião granfino é música que, ao descrever a trajetória do baião com mágoa do distanciamento do gênero das origens sertanejas, exprime a verve da obra de Gonzaga, marcada sobretudo pela vivacidade festiva da música da região.
No disco solo de Peixe, essa alegria também está representada pelo arretado Pagode russo (Luiz Gonzaga e João Silva, 1984), reavivado próximo do agitado passo cai-não-cai do frevo.
Ao fazer O fole roncou (Luiz Gonzaga e Nelson Valença, 1973) com a também arretada paraibana Cátia de França, no arremate do álbum Baião granfino, Jorge Du Peixe confirma que soube atualizar a riqueza da obra eterna de Luiz Gonzaga sem se deixar anular diante da magnitude do cancioneiro do compositor.