“Tinhorão, urutu, sucuri...”, cantou Elis Regina (1945 – 1982) ao dar voz ao samba Querelas do Brasil em 1978.
Ao listar o nome do jornalista, historiador, crítico e pesquisador musical paulista José Ramos Tinhorão (7 de fevereiro de 1928 – 3 de agosto de 2021) ao lado de cobras da fauna nacional, o letrista Aldir Blanc (1946 – 2020) destilou puro veneno em verso alusivo à sanha mortal de Tinhorão no exercício da crítica da MPB.
Parceiro de Maurício Tapajós (1943 – 1995), Blanc foi na jugular de Tinhorão porque, um ano antes, em 1977, o crítico musical tinha minimizado a importância de João Bosco na parceria com Aldir Blanc ao resenhar no Jornal do Brasil o LP Tiro de misericórdia, quarto álbum de Bosco.
Tinhorão morre aos 93 anos nesta terça-feira, 3 de agosto, tendo deixado lendas e, mais do que tudo, obras fundamentais para a bibliografia da história da música brasileira.
Mas é sobretudo como uma voz radicalmente nacionalista que Tinhorão fica no imaginário nacional, sobretudo na bolha que abriga as querelas relativas ao exercício da crítica de música brasileira, ofício abrandado nos últimos anos por já serem raríssimos os críticos musicais dispostos a ganhar desafetos em nome da liberdade de escrever o que pensa sobre álbuns e ídolos da MPB.
Autor de livros como Música popular – Um tema em debate (1966), O samba agora vai – A farsa da música popular no exterior (1969) e Pequena história da música popular – Da modinha à canção de protesto (1974), três títulos emblemáticos de obra literária encerrada há quatro anos com a edição do livro Música e cultura popular (2017), Tinhorão começou a carreira no jornal Diário Carioca no início da década de 1950.
Foi na redação do lendário diário, de onde saiu em 1958 para ir para o Jornal do Brasil, que José Ramos virou Zé Tinhorão, mais de duas décadas antes de Aldir Blanc aliar a alta carga viral das críticas do pesquisador ao veneno das cobras mais peçonhentas no verso do samba Querelas do Brasil.
Para defender a exacerbada visão nacionalista da música brasileira, Tinhorão atacava até o soberano Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), acusado de fazer música americanizada.
Alvo de biografia (Tinhorão – O legendário, escrita por Elizabeth Lorenzotti e publicada em 2010), o crítico virou mesmo lenda porque nunca poupou os ícones da MPB e do samba, geralmente preservados pelos críticos.
Venenos à parte, de ambas as partes, Tinhorão deixa legado valioso que abriu alas, a partir da década de 1960, para documentar a produção fonográfica nacional e – mais importante – para permitir o entendimento da criação e evolução da música popular feita no Brasil a partir da segunda metade do século XIX.
Nascido em Santos (SP), Tinhorão construiu a fama (boa ou má, dependendo do ponto de vista) e a carreira na cidade do Rio de Janeiro (RJ), para onde migrou ainda na infância. Mas desde 1979 morava em São Paulo (SP), cidade onde morreu de causa ainda ignorada.
O imenso acervo de Tinhorão – cerca de 13 mil LPs e quantidade similar de livros – foi adquirido em 2001 pelo Instituto Moreira Salles (IMS).
No saldo das querelas, ficam os livros e a coerência de um crítico que, mesmo radical, jamais abriu mão das crenças sobre o que seria a “legítima” música do Brasil e, se até bossa nova era qualificada como “jazz pasteurizado” na visão ácida do (dizem) cotidianamente bem-humorado crítico, que ninguém ousasse perguntar a José Ramos Tinhorão o que ele achava da música pop sertaneja e do funk.
Era bem capaz de o veneno contido na resposta ser mais mortal do que o das cobras a que foi comparado no verso corrosivo de Aldir Blanc.