Resenha de documentário
Título: Ney – À flor da pele
Direção e roteiro: Felipe Nepomuceno
Montagem: Paulo Henrique Fontenelle
Cotação: * * *
♪ Filme com exibição programada para 21 de setembro pelo Canal Curta!
♪ Esfinge da música brasileira, Ney Matogrosso fará 80 anos em 1º de agosto de 2021 sem ter sido realmente decifrado. A maquiagem usada pelo cantor em cena sempre resguarda o cidadão Ney de Souza Pereira. Mesmo quando se apresenta de cara limpa, o intérprete se mantém preservado.
Ney – À flor da pele – inédito documentário de Felipe Nepomuceno programado para ser exibido pelo Canal Curta! em 21 de setembro – está longe de dissecar o Ney de Souza Pereira. Seria até injusto cobrar essa proeza do cineasta, já que o cantor sempre delimitou bem as fronteiras da intimidade consentida em entrevistas e reagiu com a fúria de leão ferido quando tentaram invadir o território particular dele.
Embora sempre articulado, Ney Matogrosso ecoa o mesmo discurso libertário desde 1973, ano em que, como vocalista do grupo Secos & Molhados, irrompeu como facho de luz a clarear a noite escura do Brasil.
Fragmentos desse honesto discurso são reproduzidos nas poucas vezes em que Nepomucemo dá voz a Ney. “A liberdade que eu prezo tanto para mim, eu ofereço para as pessoas”, reforça o artista. “Poucas vezes na minha vida, eu chorei. E (aí) chorei mesmo. Nada tenho contra o choro. (Só) Não choro por qualquer coisa”, relata Ney, em fala mais original, ouvida já ao fim do filme.
Da mesma forma que o cineasta Joel Pizzini, diretor e roteirista do (ótimo) documentário anterior Olho nu (2014), fez o espectador enxergar Ney mais pelas frestas de palcos, casas e matas, Felipe Nepomuceno pega Ney menos pela palavra e mais pelas imagens em À flor da pele.
Algumas imagens são raras, como a apresentação feita pelo cantor no encerramento, em 2018, da censurada exposição Queermuseu, que encontrou abrigo no Parque Lage, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), após ser vetada em Porto Alegre (RS). No fim do roteiro, Ney canta Fala (João Ricardo e Luhli, 1973) diante de jovens em farra dionisíaca, corroborando em cena o discurso da vida.
Aberto com a pouco conhecida gravação de Ave Maria (Vicente Paiva e Jayme Redondo, 1950) feita por Ney para o álbum Os melhores cânticos de fé (2007), o filme sobrepõe o áudio desse registro a imagens de repressão da ditadura brasileira dos anos 1960.
Ali já é passada a mensagem fundamental do documentário: a voz e a postura de Ney Matogrosso são armas pacíficas usadas contra toda forma de opressão. Daí em diante, Felipe Nepomuceno procura reforçar esse recado ao encadear imagens – toscas, quase todas de má qualidade técnica – de clipes, trechos de shows e reproduções de reportagens e entrevistas de programas de TV, montadas por Paulo Henrique Fontenelle em ordem cronológica.
Sem a preocupação de contextualizar essas imagens no tempo e na obra de Ney, o que torna Ney – À flor da pele filme indicado somente para seguidores do artista, o diretor expõe o cantor em cena de 1973 a 2019, ano do show Bloco na rua, de cujo roteiro Nepomucemo extrai a interpretação de Como 2 e 2 (Caetano Veloso, 1971).
Os clipes das músicas Mal necessário (Mauro Kwitko, 1978) e Tem gente com fome (João Ricardo e Solano Trindade, 1979) – este com direito a ouvir a atriz Ruth de Souza (1921 – 2019) recitando o poema de Solano Trindade (1908 – 1974) musicado por João Ricardo para o repertório do Secos & Molhados – estão na seleção de Nepomuceno.
Vale acentuar que a sensação é que, ao longo dos quase 73 minutos do filme À flor da pele, Ney Matogrosso é visto sempre com a maquiagem da cena e da vida com que se preserva da curiosidade alheia. Ninguém vê Ney Matogrosso nem a olho nu.